Quando foi a última vez que fizeste uma boa análise às tuas amizades? Uma análise a sério – não digo apenas fazer uma vaga lista mental de um reduzido número de pessoas a quem doarias um rim ou alguém com quem quisesses deixar os teus filhos se, glup, te acontecesse alguma coisa. Também não é preciso ser sociopata como aquela rapariga que dividiu todas as pessoas da sua vida em 15 categorias diferentes… Ah, desculpem, mas eu não consigo – eu bem gostaria de escrever sobre isto en passant, mas é bom de mais para saltar assim.
[Vamos interromper brevemente o texto só para vos explicar o que raio estou a dizer. No Forge, uma revista da plataforma Medium, li um artigo que jurava que Ranking your friendships can make you a better friend. A autora criou um excel com uma série de entradas com a descrição de cada nível de amizade (parentes próximos ou amigos de toda a vida, amigos muito queridos, parceiros amorosos actuais, amigos circunstanciais mas queridos, amigos do trabalho e mentores, conhecidos apreciados, conhecidos profissionais apreciados, crush recíproco, ex-parceiros queridos, conhecidos por afinidade, mentores relutantes, crush não recíproco, ex-parceiros embaraçosos, inimigos pessoais, inimigos profissionais). Podem fazer a vossa categorização de amizades usando o mesmo excel que a moça disponibiliza.]
Voltando ao assunto que me trouxe aqui. Amizades. Já pensaram bem nelas? Eu sim. Aliás, todo o primeiro confinamento (Março a Junho de 2020) consistiu numa aprofundada análise à minha vida. Se há coisa que te faz sentir só no mundo é morares sozinho num apartamento localizado num prédio totalmente vazio, não teres vizinhos, não conheceres ninguém na tua rua, não teres nenhum amigo ou conhecido no teu bairro, não teres família na mesma cidade e, para cúmulo dos cúmulos, estares no meio de uma pandemia mundial que impede que pessoas tenham contacto umas com as outras. Portanto, eu e os meus (muitos) pensamentos entretinham-me sobremaneira.
A primeira coisa que notei foi que a maioria das pessoas (com família e em relações) se fechou na sua concha. Ao mesmo tempo surgiu um forte entusiamo por plataformas de videocall como o Zoom (que ainda cá anda e se tornou a empresa com mais sucesso da pandemia) ou aquela app não-sei-quantos Party que toda a gente instalou nos telemóveis e, tal como vêem, já nem me lembro do nome. Os contactos que se faziam ou fazem virtualmente eram sobretudo entre pessoas com alguma intimidade (talvez os primeiros três da lista de amizades referida acima) ou contactos que aconteciam por motivos profissionais (conversas com colegas, reuniões de alinhamento, entrevistas, etc.). Toda a categoria de amigos não-íntimos ficou sem espaço em tempos de pandemia. Os “conhecidos” da nossa vida passaram de adjectivo a particípio passado. Porque foi exactamente o que aconteceu: passaram a ser passado.
Juntamente com os conhecidos, o tipo de conversa que mantínhamos com eles também desapareceu. Conversas que se têm quando chegamos ao trabalho e penduramos o casaco no bengaleiro. Conversas que se têm quando vamos à máquina de café e nos demoramos alguns minutos a conversar com aquele colega que, por acaso, até nos dá sempre uma recomendação certeira de um novo restaurante a experimentar. Ou aquela colega mais velha que conta os episódios mais caricatos e divertidos sobre os netos (daqueles que não nos fazem revirar os olhos, mas que são realmente engraçados). Ou as partilhas com aquele colega-que-entretanto-se-tornou-amigo sobre a série que lhe recomendaste e que ele está a adorar e, de repente, se tornou quase um assunto de estimação, dando origem a um chorrilho de piadas privadas.
Já não há conversas sobre o frio que fez na noite passada, sobre o documentário que acabou de chegar à Netflix, o novo cabaz de fruta biológica que apareceu no mercado ou sobre uma coisa engraçada, uma espécie de programa que o Bruno Nogueira começou a fazer no Instagram, juntando uma série de pessoas conhecidas. São conversas agradáveis, certamente, mas não importantes ou urgentes ao ponto de merecerem um telefonema a um amigo para contar. Todos estes momentos contribuem para estreitar laços, para aprender coisas novas e tornam, sem qualquer tipo de dúvida, a nossa vida mais rica.
Amanda Mull, a jornalista da The Atlantic que escreveu o famoso artigo The pandemic has erased entire categories of friendship, contou há umas semanas no podcast All Things Considered que perdemos uma parte significativa daquilo que compõe uma vida humana. Refere que a sociedade actual incentiva as pessoas a satisfazerem as suas necessidades emocionais e sociais junto dos mais próximos: bons amigos, parceiros amorosos e família. Temos a tendência para sobrevalorizar o valor destes laços, porque quando interagimos somente com estas pessoas, perdemos algo importante, a variedade. Perdemos a oportunidade de aprender coisas novas, de sermos introduzidos a novas informações, de termos interacções sociais de baixo risco com pessoas que não conhecem todos os nossos defeitos, segredos ou passado. Perdemos o sentido de acaso. E perdemos a possibilidade de alegria inesperada.
Se, tal como eu, tiverem saudades de uma boa conversa de chacha, podem sempre assinar a Yellow Letter onde, uma vez por mês, partilho assuntos insignificantes, temas giros e, com sorte, alguns rasgos de genialidade*. A parte positiva é que me podem escrever de volta e, na loucura, até trocamos uns e-mails sobre algum assunto interessante. A única forma de combatermos esta tendência crescente para o isolamento é abraçar com força o conceito de John Donne (“No man is an island”) e estar lá: ler, falar, responder, falar, conversar, perguntar, desabafar. Eu prometo que estou a fazer o mesmo.
*viram como consegui enfiar aqui um gancho simpático e super natural para a minha newsletter? Estou maravilhada com esta elegância editorial!
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