Antes de escrever uma linha que seja, é importante que saibam de uma coisa: eu sou muito mais #TeamHowIMetYourMother do que #TeamFriends. Quem achar isto um desplante, pode sair. E aqueles que vierem dizer que são #TeamSeinfeldeMaisCoisaNenhuma também podem retirar-se porque não sabem brincar.
Uma das razões que me faz gostar mais do How I Met Your Mother é porque, para além de ter envelhecido melhor do que Friends, apresenta um fio condutor ao longo dos anos que é bastante intemporal: a busca pelo amor contada a partir de uma personagem nos seus anos maduros. Sim, eu sei que o HIMYM (vamos abreviar a partir de agora porque senão não saio daqui hoje) copia muitas ideias, piadas, storylines de Friends. Mas compensa a cópia descarada com um Bob Saget como narrador que acaba por servir de voz da consciência, bússola moral carregada de humor. Uma espécie de tio mais velho de quem gostaríamos de ouvir os melhores conselhos. E funciona. Aquele constante tom de «o que é que eu diria à minha pessoa de 25 anos?» é incrivelmente satisfatório e, para quem é focado em aprendizagens e evolução como eu, acaba por ser didáctico.
Eu gostaria agora de deixar este debate para mais tarde, mas foi a introdução necessária para mencionar um dos meus episódios favoritos da série: Last words. O episódio conta a história de um luto. O pai do Marshall morreu repentinamente e o grupo de amigos viaja todo para o Minnesota, terra do Marshall (e do Prince), para assistir ao funeral. Os dois rapazes assumem como missão fazer o Marshall rir com qualquer tolice que consigam inventar; a missão das meninas é confortá-lo naquele momento de dor.
O padre responsável pelo velório informa que o tema da cerimónia será precisamente esse, as últimas palavras que cada um dos irmãos e viúva trocaram com o Sr. Marvin. A angústia de Marshall é ainda mais flagrante porque a mãe e os irmãos contaram no púlpito histórias belíssimas sobre passeios que deram na neve com o pai, as conversas profundas e cheias de amor que mantiveram nos seus últimos dias de vida. Ora, em flashbacks que vão sendo gradualmente desenvolvidos ao longo do episódio, acompanhamos o Marshall numa dolorosa lembrança do último dia em que viu o pai, uns dias antes quando o visitou em Nova Iorque, e as conversas circunstanciais que tinham tido, como “A comida de avião é uma bela merda” ou “Tens de ver o Crocodile Dundee 3”. Quando o Marshall consegue carregar o telemóvel, que estava desligado há dias, fica a saber que tinha uma mensagem do pai no voice-mail e tem de decidir se a ouve ou não, arriscando-se a ficar com umas últimas palavras ainda piores do que as anteriores. A cena que se segue é, muito provavelmente, das mais dolorosamente bonitas de todos os anos da série. Sem pretensiosismos, com graciosidade e honestidade. Sem querer contar em demasia, importa saber que é um episódio sobre perda, sobre aquele momento em que temos de aceitar a realidade tal como ela é, realidade essa que já não contempla uma pessoa importante.
Há poucos dias perdi uma pessoa do meu círculo íntimo. Embora a causa da morte tenha sido uma doença prolongada (é assim que os jornalistas dizem para evitarem dizer “cancro”, não é?), nós, os amigos, desconhecíamos o desenvolvimento (avançado) da mesma. Assim, fomos todos apanhados desprevenidos e a notícia soou como se tivesse sido um enfarte fulminante ou um acidente de viação espalhafatoso. Nenhuma morte é mais doce do que a outra, mas há situações em que ocorre uma habituação emocional à perda. Um quase namoro solene com esse destino inevitável.
No dia em que recebi a notícia, não tive muito espaço de manobra para reagir e pensar. O termómetro do drama escalou porque me foi gentilmente pedido para dar a notícia a outros amigos próximos e ser a mensageira foi a minha missão, nada mais importava. Nesse dia ainda, revi mentalmente as nossas últimas interacções: quando havia sido a última vez que nos tínhamos visto, quando tinha ouvido a sua voz pela última vez, quais foram as últimas mensagens que trocámos. E, de uma forma muito pouco romântica, as nossas últimas palavras não foram mágicas nem inspiradoras. Não houve uma despedida justa. Confesso que seguir caminho sem um adeus tem sido uma luta inglória. Um luto inglório.
Naturalmente, todos nós sofremos perdas na nossa vida. Eu perdi os meus avós todos antes dos 35 anos e ter de me ver como uma jovem que já não tem avós foi particularmente duro. No entanto, acredito que existe uma preparação emocional genética para lidarmos com a perda de familiares. Racionalizamos a morte com um pensamento misto de “é a lei da vida” e “todos temos de passar por isto”. O luto por um amigo próximo ou alguém da nossa idade ou geração acrescenta uma camada adicional de sofrimento que é “podia ter sido eu” e “a vida é demasiado curta”, que nos obriga a confrontar-nos com a nossa própria mortalidade e fragilidade.
Como em tudo o que envolve um processo terapêutico, não há fórmulas mágicas ou milagres. A dor da perda é um caminho lento, mas há algumas coisas que tenho feito e que acredito que me têm ajudado:
- Estar a sós comigo. Tenho tomado o meu tempo para estar sozinha e reflectir sobre o que esta pessoa significou para mim em vida.
- Apoiar-me nos amigos. Tenho-me rodeado de pessoas que gostam de mim, que se preocupam comigo, que me enviam mensagens e telefonam e perguntam como tenho passado. Ainda não estou preparada para uma vida social (devido ao meu luto e, já agora, à pandemia), mas ter um sistema de apoio emocional é fundamental.
- Ter um “grief buddy”. Partilhar o que se quiser com um companheiro de luto, alguém que tenha sofrido a mesma perda, que esteja a atravessar o mesmo turbilhão de sentimentos e com quem posso partilhar memórias em conjunto, fotografias antigas, aprofundar detalhes sobre a pessoa que faleceu. Ajudamo-nos mutuamente porque sabemos o que a outra pessoa está a passar.
- Fazer algo. Refiro-me mesmo a fazer algo, construir algo, trabalhar com as mãos. A minha grief buddy fez um workshop de risografia (uma técnica de impressão por stencil) e dedicou as obras à nossa amiga; eu tenho escrito mais e lancei finalmente o Yellow, que andava há três anos a marinar.
- Aceitar a falta de closure. Isto servirá, na verdade, para a vida inteira e para todas as áreas. Nem sempre vamos ter respostas. Nem sempre vamos saber por que não fomos escolhidos para aquele emprego, por que o não-sei-quem desapareceu sem deixar rasto ou por que a morte veio bater à porta da nossa amiga.
- Cuidar de mim. Pode ser difícil dormir nos primeiros tempos, pode ser difícil ter apetite para comer ou ter energia para fazer exercício, mas é importante honrarmos a nossa saúde e o nosso bem-estar. Sei lá, ir fazer uma massagem, ir passar um dia na piscina a ler um livro, ou ir passear com o cão para o jardim durante horas. Tudo conta.
- Levar um dia de cada vez. Tem sido esta a minha resposta frequente quando me perguntam como tenho passado. Tenho levado um dia de cada vez. Não é um concurso, não vamos ganhar um prémio por superarmos a tristeza amanhã. Respeitar os timings da minha vida tem sido o acto mais gentil que tenho tido para comigo mesma.
Numa altura em que as palavras mais frequentes nos lábios de todos é “novo normal”, o meu novo normal é aprender a lidar com um mundo em que a minha amiga Ana já não existe.
E aí desse lado? Já viveram uma experiência semelhante? O que acrescentariam a esta lista?
Silvia Caraça diz
Gostei muito deste texto.
Deixou-me a pensar no que é mais justo para os nossos que nos deixam: se a “habituação emocional à perda, um namoro solene com o inevitável destino” ou se um choque repentino e um inglório luto em que não conseguimos romantizar o adeus porque ele não aconteceu… E é daquelas questões que me deixam sem resposta preferível. É uma balança muito equilibrada em que o que ganha mesmo é a desolação da ausência…
Rafa diz
Tens toda a razão, minha querida. Obrigada por estares aqui. <3
Margarida diz
Adorei o teu texto. Perdi o meu pai com 21 anos. Recebemos a notícia por telefone, porque ele estava em Angola. Foi a semana mais horrível da minha vida, até ao funeral. Foi um luto inglório, como diSseste. 10 anos depois ainda estou a fazer as pazes com a Vida por me ter pregado esta partida mas sugestões como as tuas foram o que me valeram. Isso é pedir ajuda profissional- as vezes não há melhor que isso.
Entretanto, tb sou team HIMYM e já revi mil vezes – mas não consigo ver o episódio da morte do pai do Marshall ❤️
Sãozinha diz
Nunca perdi um amigo tão próximo, felizmente. Não consigo imaginar o teu sofrimento. Do pouco que convivi com a Ana, sinto que esta foi a forma como ela quis morrer. Ela sempre foi reservada, se calhar até patologicamente, e deixou-vos a todos sem chão. Mas ela foi em paz. Um beijinho
Rafa diz
Querida Sãozinha, obrigada pelo teu comentário. Sim, isto foi mesmo uma escolha dela e espero muito que tenha ido em paz. <3 Não tenho essa certeza, mas acho que nunca irei tê-la.